Ao telefone parte II
" (...) Esta mulher desejava operar a sua alma através da sua memoria, desejava então que uma parte da sua memória desaparecesse levando consigo todas as cenas de amor, todos os lugares em que se emprestaram um ao outro, todos os momentos em que se juntaram os outros a si, todos os outros que os ligaram ainda mais, todos os sonhos que aconteceram, todos os sonhos que cairam. Esta mulher desejava que tudo passasse a ser nada e que nada pudesse ser tudo, a partir de hoje. E ela desejava o impossivel duma frase batida, que hoje fosse o primeiro dia do resto da sua vida. Ao telefone.
Porque esta mulher queria os pés no lugar das mãos e as mãos no lugar dos pés, queria por-se de gatas e atravessar o resto da vida debaixo da mesa. Queria esquecer aquelas rugas desalinhadas da testa ao pescoço, aquela cicatriz ortografica por cima do labio superior, aquela cor de olhos, um resto de castanho isolado já não era cor nenhuma, aquele corpo inteiro, a franja desalinhada, cinzenta de idade e aquele cheiro de quem mora em muitos lugares. Esta mulher queria esquecer definitivamente aquele homem. Mas esta mulher queria um enterro sem cortejo, sem corola, sem padre, sem missa, sem despedida. Esta mulher não queria que lhe doesse o corpo no lugar da alma. Esta mulher não só queria esvaziar a concha da agua, como tambem queria destruir a forma da concha para que nunca mais pensasse em enche-la com o quer que fosse. Queria o vazio no lugar do amor. Queria pegar nele, moldá-lo a medida duma so pessoa, dum so copo. E queria um prato cheio daquilo. Queria uma mesa para um e esvaziar a barriga de todos os sabores que conhecia. (...)"
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