terça-feira, setembro 06, 2005

Tenho saudades de quando, em miúdo, ligava para a casa da minha primeira namorada. Timidamente, dizia que era um amigo. Do outro lado, a mãe ria-se e percebia que a amizade da infância tinha outra face na adolescência. E ouvia as palavras contidas, mas bem educadas, a dizer: “é para ti, um amigo”. Discar o número e não se saber quem poderia atender. O pai ou a mãe. E tentava sempre acertar na hora. Para que fosse ela. E gentilmente dizer. “Sou eu”. Mais do que um amigo. Tenho saudades de quando, para se chegar à pessoa que queria, tinha de conhecer os restantes que a envolvem. Quando um amigo me ligava e o meu pai me dizia: “É o Sérgio”. Poderia ser outro. Poderiam ser tantos. Mas primeiro conheciam o meu pai. Poderia ser a minha mãe. Ou a minha irmã. E perguntavam: “Quem é o teu amigo?”. Claro, pergunta óbvia se não o conhecessem. Quando a face se ligava ao nome tudo ficava mais simples e claro.
Tenho saudades quando me perdia da minha primeira namorada. Combinávamos aquele banco no parque. O mais escondido de todos. A folhagem retinha o nosso amor num casulo que nos fazia nascer nos braços de ambos. A hora certa. Se era Verão, sempre depois do quente mais quente que as horas trazem. E ali ficávamos a receber a brisa do final de tarde. Isto quando as horas batiam certo. Quando o banco nos recebia. Eram muitas as vezes em que me perdia. E ela, perdida, regressava a casa. Ligava e dizia que era uma amiga. Tenho saudades quando saía e demorava a regressar a casa. Dizia uma hora. E fugia ao tempo. Os meus pais, preocupados, ficavam à espera. Quando chegava dormiam. Mas tinham de esperar. Não havia forma de ligar. De confirmar. Era livre. Ainda que irresponsável. Mas livre na minha irresponsabilidade muito bem gerida. Quando conhecia alguém, pedia o telefone de casa. Algumas vezes a morada. E quase sempre tentava saber por onde parava. Hoje tudo é diferente. Há um milhão de formas de se chegar a uma pessoa. De a ver. Seja num espelho da Internet. Numa conversa virtual. No telefone que móvel nos acompanha na nossa mobilidade. Somos reféns da nossa existência. Porque o que somos se alastrou além da nossa liberdade. Sempre disponíveis. Sempre visíveis. Tenho saudades dos momentos em que para dizer que amava tinha de ligar. E por vezes dizer: “Olá, é um amigo”.
by: Adão

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

A primeira vez que li o texto, a minha vontade era, entrando a matar, dizer que eu de nada tenho saudades, que é apenas para o futuro que olho, que nenhuma âncora ficou para me prender a existências passadas...
... e seria, apesar de ter uma ponta de verdade, o comentário mais estúpido de todos os comentários estúpidos que já fiz na vida!

Hoje reli o texto de noite, e só eu sei como a noite é uma boa conselheira para mim, e me permite ver além daquilo que de dia atinjo, porque não poucas vezes a luz do sol me castra a compreensão.
Contrariar este texto seria praticamente um crime. A inocência de um primeiro amor, vivido ainda numa altura em que é isso que domina de facto: a inocência. O amor escondido de todos, principalmente dos pais, não por medo de o assumir, mas mais porque eles não compreenderiam nem levariam a sério uma "coisa de crianças".
Porque um "sou o namorado" tornaria tudo menos belo...
Perdi-me neste texto, e não vou comentar passo-a-passo todos as vezes em que abrandei o passo para ler com mais calma.
Gosto dos momentos a dois e da forma como são retratados. Gosto do retrato de "outra época" não tão longínqua assim. Gosto das saudades do isolamento. Gosto da recordação do tempo em que nos podíamos esconder sem que ninguém tivesse forma de nos encontrar.


Eu tenho uma amiga para quem, quando ligo, digo que sou o "amigo Camilo", mas será de facto isso que quero dizer?
(não resisti)

2:14 da manhã  

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