quinta-feira, outubro 27, 2005

À hora marcada (2)

- Bom dia Senhora Carolina. Ainda bem que voltou como combinado. A nossa outra sessão não correu muito bem, mas hoje tenho uma proposta para lhe fazer.
- Prosposta?
- Sim. Vou fazer-lhe aqui umas perguntas e só tem de responder. É divertido, vai ver!!... Podemos começar?
-Sim. Penso que sim.
-Pode dizer-me o que vê nesta imagem?
-Isso?...Não sei...Diria que é ...uma noiva de costas..
-Hum....interessante...uma noiva de costas, portanto?
-Sim...talvez a fugir...
-Entao e o que vê nesta aqui?
-Nesta?
-Sim..
Carolina inclinou a cabeça e depois respondeu:
-Nessa vejo o fundo do mar...
-Podemos ver mais uma?
-Sim, claro...até estou a gostar deste jogo...
-Ainda bem! Então o que vê nesta imagem aqui?
-Essa é a mais fácil....
-Ai sim?
-Sim...é uma boia!
-Ok, vou apontar aqui essas suas interpretações...
Carolina encolheu os ombros e passado algum tempo suspirou, como quem derepente se sente entediado.
-Está cansada de estar aqui?
Carolina abanou a cabeça.
-Diga lá...onde é que lhe apetecia ir agora?
- Sei lá...ao cinema, a um museu, a uma exposição...
-Sozinha?
Carolina ficou calada. Mexia-se de quando em vez, tentando responder qualquer coisa que depois não saia. Pouco tempo depois, o relógio tocou. A hora tinha acabado.
- Bem, Senhora Carolina, gostei muito de jogar consigo. Até para a semana.
- Até para a semana, Doutor!
Depois de Carolina sair do consultório, o teste psicológico que lhe foi feito era claro....

quinta-feira, outubro 20, 2005

À hora marcada....(parte 1)

- Bom dia Senhora Carolina. Queira por favor deitar-se nessa cadeira, enquanto eu acabo de preencher uns dados na sua ficha.
A mulher ficou de pé. Com os olhos semi-cerrados, olhava para o homem que se encontrava à sua frente e tentava perceber o que fazia naquele consultório.
- Senhora Carolina, é muito importante que se sinta em casa. Tente fazer um esforço para descontrair e deite-se na cadeira.
Ela obedeceu finalmente. Enquanto ele falava, ainda com os olhos nos papeis:
- Com estes dias tão cinzentos, parece que anda tudo mais infeliz, não lhe parece?
Carolina ficou calada. Olhava o tecto e brincava com as costuras da saia que trazia.
Ele levantou-se da secretária e aproximou-se dela. A sua voz tornou-se um pouco mais baixa para lhe transmitir um sinal amigável.
- Quer contar-me como se sente?
- .. Com vontade de gritar...- respondeu ela com uma voz tremida, embargada por umas lágrimas que ameaçavam cair.
Mas Carolina controlou-se. Já não se lembra da última vez que deixou transparecer sentimentos. Já não se lembra de quando acreditava neles com toda a sua força.
-Grite! - disse ele de imediato.
Carolina fechou os olhos e sacudiu a cabeça.
- Gritar faz bem... ainda que pense que não.
Ela ficou calada. Tentando, como sempre, que as palavras ecoassem para dentro.
-Vamos... diga lá o que a preocupa...- insisitiu ele.
-... As minhas palavras costumam bater em paredes de alma vazias.. não me vejo com força para voltar acreditar que o contrário possa acontecer...
- Por vezes, um eco pode ser uma resposta. Vá, concentre-se e diga-me exactamente o que sente.
Só se ouvia silêncio... e uma respiração funda que guardava um lamento.
Ele continuou...
- Repare, se gritamos para dentro a única pessoa que nos ouve somos nós mesmos... e nem sempre depende de nós a resolução de algum problema que nos envolva...
-...Sim, eu sei ...talvez seja mesmo isso...os meus ecos reflectem medos... complexos... e para mim, não são fáceis de entoar para todos ouvirem... porque sei que me vou pôr a descoberto... e disso, eu já n sou capaz...
- Consigo perceber que está defensiva... e desculpe-me a pergunta, mas... do que se defende?
Ela voltou a ficar calada...

terça-feira, outubro 11, 2005

Que se foda a lógica!

Não, eu não jogo Sudoku!
Estou farto de jogos de lógica. Farto de um mundo de números! Farto de uma vida arrumada!
Quero que me provem que se "Todos os A's são B's e todos os B's são C's, podem haver A's que não são C's".
Quero ser o A que escapa à lógica!
Que se lixem as Ciências! Para que precisamos delas afinal?
Haverá equação mais bela do que um livro de poesia?
Mas também me abominam as regras gramaticais! Gosto de ser sujeito sem frase, solto!
Mas gosto de verbos... correr, pensar, agir, respirar, sentir... viver!
E gosto de uma vida adjectivada. Descrita pormenorizadamente, para que seja absorvida até ao fim.
Chateiam-me as longas narrativas, muito concretas.
Gosto de metáforas! De interpretações várias! De ser uma hipérbole! De viver sem comparações! Sem eufemismos! Sentir em gradação! Enfrentar os paradoxos!
Mas poupem-me às falácias! Evitem toldar-me a visão. E nem pensem em inutilizar-me com "Argumentum ad Hominem", porque há "Hominems" que não são atingidos por nenhum "Argumentum".
A mim só me atinge o que me toca. E só me toca o que me marca. E só me marca o que me espanta. E cada vez menos coisas me espantam.
Podem descrever pela física o movimento da luz. Mas quando se olha para um pôr do sol, não é uma fórmula que nos comove!
E uma música é mais do que uma onda sonora.

Não, eu não jogo Sudoku! E tenho pena que tanta gente jogue, e arrume a vida num quadradinho, numa linha e numa coluna, com medo de repetir números, impedindo que haja misturas.

A lógica é moda? Expliquem-me a lógica disso!

terça-feira, outubro 04, 2005

Em mudanças

Num daqueles dias em que me deixava deitada na minha cama a olhar o tecto, percebi que teimava com a vida... Percebi que durante muitos anos, quis tudo à minha maneira e não deixei a minha mente aberta para outras possibilidades.
Tantas vezes teimei, tantas vezes perdi e tantas vezes deixei escapar a lição que a vida me queria ensinar.
Nesse dia percebi...Preciso mudar!... E seja o que for que se queira mudar...é sempre legitimo, desde que haja essa necessidade.
No entanto, nem sempre há força para tal. É sempre doloroso o período de mutação. Cortar os hábitos e os vícios de sempre... não deve ser de um dia para o outro. Leva anos. A isso chama-se viver e apreender. Passar a vida a encontrar o melhor de nós... ou a melhor forma de nos protegermos e nos solidificarmos... é um processo longo e exigente...
Passei anos a dizer que havia urgência em alterar... os meus péssimos hábitos, vícios e principalmente a mania de me pôr sempre para último plano. Mas quase nunca alterei o quer que seja. Quanto mais me desiludia, mais me irritava. Quanto mais me irritava, ainda mais tentava mudar e ...nada! Nada mudava.
No entanto, este processo de mentalização não foi em vão. Um dia, passado muitos anos, tudo estava mudado. Incluindo eu. Sempre que me obriguei, não senti progressos. Mas passado todo este tempo, olho para mim e não sou a mesma. Empacotei todas as memórias, carreguei o camião com tudo o que queria levar comigo e deixei para trás o que me pesava.
Hoje, arrumo a casa para qual me mudei. Sei que estou menos crente, um pouco mais desconfiada e ponderada, mas sobretudo mais descontraida.
Cuido de mim. Não choro o que passou, porque aprecio o que fez de mim. Tenho mais cuidado com as palavras que utilizo e já consigo calar-me e não dizer o que magoa mais...
Percebi que o nosso umbigo é uma cicatriz universal e que todos temos um... Percebi que nem sempre preciso falar para ser ouvida...e por isso, nem sempre permaneço onde gostavam. Acredito que nos sentimos sempre mais alguém quando alguém nos ama, mas hoje em dia é a minha vontade que me move e a minha paixão (por mim) que me enaltece. Existe um egoismo inerente a todos... e eu percebi que também tenho de o saber utilizar a meu favor. Rodeio-me do que me é essencial e não perco tempo a perceber porque não me compreendem..
Por vezes, doi-me não cultivar mais o que me dão. Mas há que separar o trigo do joio. E é do meu trigo que agora vou cuidar...
Mas no fundo sei que a minha essência não me abandona...E ainda bem que assim é, pois tal como alguém me disse um dia... "É bom também sabermos que ainda há quem nos reconheça."