domingo, dezembro 03, 2006

Natal


Há quem cante músicas alegres. Há quem esteja, com a família, a desembrulhar prendas neste momento. Há quem esteja feliz. Há quem seja feliz!
Para ele era uma noite pior que as outras.
Normalmente sente-se ainda mais abandonado. Mas "Natal" é uma palavra que não gosta de ler. Que quase o ofende. A sua descrença no divino fez com que não celebrasse "O Nascimento". A sua descrença no terreno, fez com que se fechasse no seu Mundo. A sua descrença em si mesmo fez com que não conseguisse dormir.
Vestiu um casaco forte, o mais forte que tinha, calçou umas luvas, e foi até ao terraço.
Via luzes que saiam das pressianas entreabertas, por isso sentou-se, enconstado à parede, de onde apenas podia ver o céu. Foi ali que ficou, apenas ele, queimando a bafos demorados um Marlboro que lhe fazia companhia.
Tinha os 46 anos marcados na figura, na pele, no cabelo, no olhar...
A vida passava por ele como sempre havia passado, com todos os bons e maus momentos, com todas as alegrias e tristezas, conquistas e derrotas, com todas as personagens. Se ele ali estava hoje, sozinho (e ele sabia-o) também a ele se devia. Porque se entregou às pessoas erradas, porque desprezou as certas. Porque perdeu a coragem de sofrer. Porque escolheu o pouco ao risco do nada. Porque abandonou as convicções, as ideologias, o romance da juventude. Porque se deixou envelhecer com a idade. Porque se tornou pior.
Porque todos os dias, como hoje, já não chora mais...
Ainda se lembra do nervosismo, do "nunca mais chega a meia-noite", da lareira, e do calor que sentia. Mesmo sem que a madeira estivesse a queimar. Ainda se lembra, porque nunca consegui esquecer.
- Maldita decisão a minha, de não ir a Portugal ter com os meus - atira ao ar, em voz lenta e pesada.
Era um estrangeiro naquele dia, mesmo numa terra que aprendera a chamar sua.
Acende outro cigarro na ponta que findava, e olha para as botas que trazia calçadas, que tinham percorrido com ele muitos dos quilómetros da sua existência recente. Também elas estão gastas, com a pele estragada, com a sola fininha.
Sente pena de si mesmo, coisa que evitava haviam anos. "A dor é temporária, o orgulho é para sempre", disseram-lhe um dia. E acredita nisso hoje, como sempre. Mas o orgulho não estava com ele naquela noite. Naquela noite, era apenas ele. Com o cabelo branco aos caracóis que se despenteava com o vento frio, com o casaco de pele castanho que não o aquecia o suficiente, com o cigarro a meio na mão trémula e gelada, com a beata apagada deitada a seu lado.
Já não chora. Mas sofre. Uma vida esvaziada de sentido, tomba como um vaso de cristal sujeito à tempestade.
Uma música da juventude toca-lhe ao de leve a memória. De Coimbra veio em tempos "Fuck Christmas baby, I got the Blues", pela voz de uma personagem criada por alguém que não se lembra.
Mas não é mais um jovem. E os blues tornaram-se a sua banda sonora há tempo demais, pautando cada dia, cada mês, cada ano, num compasso repetido de que não conseguia variar.
- O Natal pode ser uma merda! Perdeu todos os sentidos que tinha. Tem luz a mais, som a mais, tudo a mais. E não passa nenhuma estrela cadente.

Mais uma vida jogada fora. Terá valido a pena? Faria tudo igual? Não sabe.
E já é tão tarde para lutar... abandona o ringue.

5 Comments:

Blogger camilo said...

É um "Parabéns ao blog" meio triste, mas amanhã prometo que meto qualquer coisa para dar um boost a isto...

Leiam o texto abaixo que é bem melhor que o meu, e ao qual roubei descaradamente o lugar de topo... sorry k8tie, mas este hoje saiu naturalmente, e amanhã já não sei.

5:01 da manhã  
Blogger zorlac said...

Texto brilhante Camilo!
Retratar o que muitos sentem já se tornou um hábito por estas bandas mas a emoção de o sentir vendo tudo de fora é bem diferente...apenas me identifico com 2 pequenas passagens deste teu texto por serem uma constante na minha vida...
"Porque escolheu o pouco ao risco do nada." - Infelizmente as pessoas vão-se contentando cada vez mais com aquilo que têm mesmo não sendo o que querem...Falta-lhes coragem para arriscar, para dizer não à conformidade da vida e para lutarem pelo que querem!
"A dor é temporária, o orgulho é para sempre" - A dor dura o tempo que nós quisermos...o orgulho pode toldar-nos a visão e impede-nos, muitas vezes, de fazermos o mais correcto, o mais sensato...

De qualquer maneira Camilo, é triste passar um Natal assim, sózinho, mas para mim a solidão é triste em qualquer altura do ano!
Logo eu, que o meu maior medo é acabar sózinho...

10:51 da tarde  
Blogger camilo said...

Sim, não tenho 46 anos, por isso desta vez não sou efectivamente eu no texto... mas ainda assim foi difícil escrever isto... secalhar, como tu, também tenho medo da solidão. Não de estar sozinho, mas de me sentir sozinho!

É criticável contentarmo-nos com pouco, até os White Stripes dizem "Something better than nothing... something better than nothing is giving up!", mas a verdade é que às vezes é lixado voltar a apostar! Esta personagem perdeu a força...

O orgulho pode até ajudar a dor ir embora... não sei, mas acho que o orgulho bem medido, pode ser uma ajuda do caraças!

Natal sozinho deve ser complicado... mas tenho a vantagem de ter aqui a minha família, portanto pelo menos este ano não vai ser como a personagem. :P

E até me visto de Pai Natal para dar as prendas à mana pequenina! :)

E é a parte que mais gosto! :P

(mas podia sair o euromilhões se não a mim, pelo menos ao cota... queria uma harley!) :P

11:36 da tarde  
Blogger k8tye said...

Para retribuir o comentario que me fizeste, digo apenas: gostei do texto, tambem me sinto assim! (E MESMO ASSIM TEM MAIS PALAVRAS QUE O TEU)

12:05 da manhã  
Blogger camilo said...

Para a próxima não comento...

9:28 da manhã  

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