Há quem cante músicas alegres. Há quem esteja, com a família, a desembrulhar prendas neste momento. Há quem esteja feliz. Há quem seja feliz!
Para ele era uma noite pior que as outras.
Normalmente sente-se ainda mais abandonado. Mas "Natal" é uma palavra que não gosta de ler. Que quase o ofende. A sua descrença no divino fez com que não celebrasse "O Nascimento". A sua descrença no terreno, fez com que se fechasse no seu Mundo. A sua descrença em si mesmo fez com que não conseguisse dormir.
Vestiu um casaco forte, o mais forte que tinha, calçou umas luvas, e foi até ao terraço.
Via luzes que saiam das pressianas entreabertas, por isso sentou-se, enconstado à parede, de onde apenas podia ver o céu. Foi ali que ficou, apenas ele, queimando a bafos demorados um Marlboro que lhe fazia companhia.
Tinha os 46 anos marcados na figura, na pele, no cabelo, no olhar...
A vida passava por ele como sempre havia passado, com todos os bons e maus momentos, com todas as alegrias e tristezas, conquistas e derrotas, com todas as personagens. Se ele ali estava hoje, sozinho (e ele sabia-o) também a ele se devia. Porque se entregou às pessoas erradas, porque desprezou as certas. Porque perdeu a coragem de sofrer. Porque escolheu o pouco ao risco do nada. Porque abandonou as convicções, as ideologias, o romance da juventude. Porque se deixou envelhecer com a idade. Porque se tornou pior.
Porque todos os dias, como hoje, já não chora mais...
Ainda se lembra do nervosismo, do "nunca mais chega a meia-noite", da lareira, e do calor que sentia. Mesmo sem que a madeira estivesse a queimar. Ainda se lembra, porque nunca consegui esquecer.
- Maldita decisão a minha, de não ir a Portugal ter com os meus - atira ao ar, em voz lenta e pesada.
Era um estrangeiro naquele dia, mesmo numa terra que aprendera a chamar sua.
Acende outro cigarro na ponta que findava, e olha para as botas que trazia calçadas, que tinham percorrido com ele muitos dos quilómetros da sua existência recente. Também elas estão gastas, com a pele estragada, com a sola fininha.
Sente pena de si mesmo, coisa que evitava haviam anos. "A dor é temporária, o orgulho é para sempre", disseram-lhe um dia. E acredita nisso hoje, como sempre. Mas o orgulho não estava com ele naquela noite. Naquela noite, era apenas ele. Com o cabelo branco aos caracóis que se despenteava com o vento frio, com o casaco de pele castanho que não o aquecia o suficiente, com o cigarro a meio na mão trémula e gelada, com a beata apagada deitada a seu lado.
Já não chora. Mas sofre. Uma vida esvaziada de sentido, tomba como um vaso de cristal sujeito à tempestade.
Uma música da juventude toca-lhe ao de leve a memória. De Coimbra veio em tempos "Fuck Christmas baby, I got the Blues", pela voz de uma personagem criada por alguém que não se lembra.
Mas não é mais um jovem. E os blues tornaram-se a sua banda sonora há tempo demais, pautando cada dia, cada mês, cada ano, num compasso repetido de que não conseguia variar.
- O Natal pode ser uma merda! Perdeu todos os sentidos que tinha. Tem luz a mais, som a mais, tudo a mais. E não passa nenhuma estrela cadente.
Mais uma vida jogada fora. Terá valido a pena? Faria tudo igual? Não sabe.
E já é tão tarde para lutar... abandona o ringue.